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ENTREVISTA

Juíza Reijane de Oliveira: "Não existe lugar seguro para a mulher na sociedade atual"

Nas ruas, transportes públicos, em meio à busca por uma fonte de renda. Não existe lugar seguro, na sociedade atual, quando se é mulher. A série de estupros e o assassinato de uma jovem de 20 anos no município de Marituba, que chegaram ao conhecimento das

Imagem ilustrativa da notícia Juíza Reijane de Oliveira: "Não existe lugar seguro para a mulher na sociedade atual" camera A juíza auxiliar da Coordenadoria das Mulheres em situação de Violência Doméstica e Familiar fala sobre a situação de vulnerabilidade a que as mulheres estão submetidas por causa da violência que sofrem |

Nas ruas, transportes públicos, em meio à busca por uma fonte de renda. Não existe lugar seguro, na sociedade atual, quando se é mulher. A série de estupros e o assassinato de uma jovem de 20 anos no município de Marituba, que chegaram ao conhecimento das autoridades na última semana, é mais um infeliz exemplo da situação preocupante a qual as mulheres estão submetidas pelo simples fato de serem do gênero feminino.

Mesmo diante da apreensão do adolescente acusado dos crimes e da prisão do homem acusado de ser o seu cúmplice, a situação de medo permanece como parte da rotina não apenas de quem chegou a ser abordada pelo adolescente nas redes sociais, mas pelas mulheres em diferentes contextos da sociedade.

Juíza auxiliar da Coordenadoria das Mulheres em situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid), do Tribunal de Justiça do Pará (TJPA), Reijjane de Oliveira destaca que “a maior vulnerabilidade das mulheres é o próprio fato de serem mulheres”. A exemplo dos casos acompanhados em sua área de atuação, a da violência doméstica, ela destaca que a violação de direitos à mulher pode ocorrer em qualquer espaço. “As mulheres saem às ruas com medo de serem violentadas, de terem o seu corpo violentado. Nós, mulheres, vivemos sob constante medo de sofrer violência e sofremos diversas violências”.

Sobre a situação de vulnerabilidade a que as mulheres estão submetidas, em decorrência desses diversos tipos de violência praticados contra elas, a magistrada conversou com o DIÁRIO.

P - Como você avalia o cenário da violência contra a mulher hoje?

R - A situação da violência contra a mulher no Pará, no Brasil e no mundo continua sendo uma grande preocupação para as mulheres, principalmente, e para a sociedade. É uma situação que demanda, urgentemente, que o Estado - e aqui eu me refiro ao Estado enquanto Nação mesmo - e os poderes Executivos, Legislativo e Judiciário assumam realmente o compromisso que o Brasil tem com o enfrentamento à violência contra a mulher quando firmou as convenções e tratados internacionais. O Brasil é signatário da Convenção de Belém do Pará e também da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher. Então, é preciso que o poder público assuma a sua responsabilidade, fazendo políticas públicas que possam, efetivamente, diminuir a violência contra a mulher.

P - O que tem sido feito até agora?

R - O Legislativo tem feito leis muito importantes. Temos a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), que tem sido um instrumento de muito valor para as mulheres no Brasil, e desde 2015 temos uma mudança significativa com a qualificadora para o crime de feminicídio, que alterou o artigo 121 do Código Penal Brasileiro. Porém, a maior vulnerabilidade das mulheres é o próprio fato de serem mulheres. As mulheres, hoje, vivem amedrontadas e, embora nós tenhamos um bom arcabouço jurídico, não se pode esperar que se elimine a discriminação que leva à violência contra a mulher somente com leis.

P - Há a necessidade de uma ação mais efetiva?

R - É preciso urgentemente que se façam políticas públicas para educar as pessoas, a partir da infância, para uma convivência em que a igualdade seja um valor primordial e que se respeitem as diferenças. É preciso que a sociedade compreenda que não é natural a violência contra a mulher. A violência contra a mulher é uma grave violação aos direitos humanos. A sociedade precisa compreender isso e o poder público precisa promover políticas públicas no sentido de conscientizar as pessoas sobre essas questões da violência e das desigualdades de gênero e fazer uma educação igualitária em que meninos e meninas possam perceber que os papéis são iguais para eles. Não pode haver distinção entre o que um menino faz e o que uma menina faz. Esses papéis de gênero, da forma como se encontram hoje, precisam ser desconstruídos.

P - O simples fato de ser mulher é um risco?

R - Vivemos em uma sociedade muito violenta que faz com que as pessoas tenham medo de sair de casa pela violência no trânsito ou pelo risco de roubos, por exemplo, mas as mulheres têm outro tipo de medo. As mulheres saem às ruas com medo de serem violentadas, de terem o seu corpo violentado. E isso vem de uma estrutura machista fundada na ideologia do patriarcado que prega que o homem deve ter o domínio sobre a mulher e sobre o seu corpo, sua vida, suas vontades. Então, quando um homem violenta o corpo de uma mulher está inserido neste contexto. E aí é preciso que a sociedade não culpabilize a mulher. Quando a mulher sofre um estupro, uma violência sexual, o foco muitas vezes sai daquela violência extrema contra a mulher e vai para o comportamento daquela mesma mulher. O foco passa a ser a roupa que ela usava, com quem e onde ela estava, o horário em que ela estava, se ela estava sozinha.

P - A exemplo do que ocorreu no caso das mulheres violentadas em Marituba...

R - Isso ocorre em decorrência de estereótipos que dizem que, se a mulher sai daquele figurino que foi criado para ela, então ela está se colocando à disposição; que se você rompeu com esse modelo, então você assume esse risco. A violência contra a mulher, especialmente no que se refere ao estupro e ao feminicídio, é um crime de ódio à condição de mulher, são crimes de dominação. Não existe nada que simbolize mais a dominação sobre o corpo de uma mulher do que o crime de estupro. Quando um homem violenta sexualmente uma mulher, ele está dizendo: “eu sou o dono desse corpo”. Então, quando a mulher rompe com qualquer padrão que era esperado para ela, o agressor não aceita. O feminicídio, em grande maioria, ocorre justamente quando a mulher rompe um relacionamento, quando ela se separa, porque ele diz que ele é dono dela. É a dominação. Ele não aceita que aquela mulher tome decisões. Então, a lei é importante? É importante que se apure o crime, processe o agressor e aplique a pena? É muito importante, sim, para que não haja impunidade, mas é preciso ir além disso. É preciso que se mude esse tipo de cultura, em que a sociedade ache natural e que até minimize a conduta de um homem que matou uma mulher porque ele não aceitou a separação, já que “o casamento e a família devem ser para sempre”. Esse é um discurso muito usado nos tribunais do Júri, quando muitas vezes a vítima, que já não está mais no mundo físico e já não tem mais como se defender, é aviltada, atacada. E aí levam para o tribunal do Júri a imagem daquele homem que, mesmo tendo tirado a vida de uma mulher pela condição dela de mulher, as pessoas dizem que era um ótimo pai de família, um excelente vizinho, trabalhador, honesto. E ele, talvez, até tenha essas características, mas ele era, acima de tudo, um machista, um dominador que queria ter a mulher submissa à sua vontade e no momento em que ela não mais admitiu ser submissa, ele se achou no direito de tirar a vida dela porque ele acha que tem direito sobre ela, sobre a vida e a morte, sobre o corpo, sobre as vontades, sobre os desejos dela.

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A série de estupros e o assassinato de Samara Mescouto (foto) no município de Marituba é mais um infeliz exemplo da situação preocupante de violência a qual as mulheres estão submetidas. Foto: Arquivo Pessoal

P - E isso pode ocorrer em qualquer espaço da sociedade?

R - Não existe lugar seguro para a mulher na sociedade atual. Ela não tem segurança na rua, não tem segurança no seu local de trabalho porque, também lá, muitas vezes, é assediada; não tem segurança no transporte público porque sofre importunação sexual e ela também não tem segurança dentro da sua casa, que é onde, na maioria das vezes, ocorrem as agressões e feminicídios. Nós, mulheres, vivemos sob constante medo de sofrer violência e sofremos diversas violências, também existem as violências simbólicas. As violências são como um iceberg: o que vemos na ponta é o feminicídio, que é o que mais sobressai porque é o que existe de pior, que é a eliminação da mulher. E a forma como geralmente se dão esses crimes mostram exatamente o ódio, o menosprezo. Geralmente eles mutilam órgãos, desfiguram o rosto da mulher... É realmente muito grave a situação que se vive hoje.

P - A violência contra a mulher tem aumentado?

R - Ela tem aumentado. Pode ser paradoxal, mas na medida em que as mulheres tomam mais consciência, elas denunciam mais, então nós conseguimos ter mais dados, maior visibilidade. Foi muito importante essa mudança no Código Penal colocando essa qualificadora do feminicídio porque, antes, a mulher era assassinada por crime de ódio, discriminação, de menosprezo, mas estava lá no meio de homicídios. Então não tinha a visibilidade necessária. E porque essa visibilidade é importante? Para que a sociedade tome consciência e o poder público formule as políticas públicas para prevenir. A Lei Maria da Penha tem 13 anos, ela diminuiu a violência? Não, porque o que diminui violência é educar as pessoas para uma cultura não violenta, educar as pessoas para a igualdade de gêneros, diminuir a desigualdade social e a eliminação de qualquer tipo de preconceito. As mulheres negras são as que morrem mais, elas são as maiores vítimas de feminicídio. As pesquisas mostram que diminuiu o feminicídio para as mulheres brancas e aumentou para as mulheres negras. Então é preciso que haja políticas públicas no sentido de trabalhar, também, as questões raciais. Não se pode falar em diminuir violência contra a mulher com uma lei que tem uma pena grave porque somente com isso não se diminui violência.

P - É necessário um conjunto de ações?

R - É preciso trabalhar a questão em todos os âmbitos, na saúde também, por exemplo. As mulheres sofrem violência obstétrica, então é preciso trabalhar nos setores de saúde para evitar a violência contra as mulheres. E, mais uma vez, as mulheres negras são as que mais sofrem violência obstétrica, então é preciso trabalhar as questões raciais. É necessária a mudança dos padrões de gênero que a sociedade atual tem. E como se faz para mudar isso? Informação e educação, principalmente. Na escola, quando as crianças estão aprendendo apenas com brinquedos, é preciso que não haja separação de brinquedos: bola para meninos, boneca para meninas. Quando se dá uma bola apenas para um menino, ali tem uma simbologia. O que aquilo significa? A bola é um brinquedo que se brinca em equipe, que demanda uma competitividade, que se brinca no espaço público como a rua, a quadra ou o clube. Já quando se dá a boneca apenas para a menina, está se dizendo que a função dela é ser mãe. Mais do que mãe, cuidadora. Ela vai aprender a cuidar da família e o espaço dela é o doméstico. Então, até mesmo quando se está ensinando as crianças a brincar, você pode mudar padrões de gênero, mostrando para as crianças que meninos podem brincar de boneca porque, se um dia ele for pai, ele precisa saber como se cuida de uma criança; que menino pode cuidar de casinha porque ele deve fazer as tarefas domésticas, como lavar louça ou varrer a casa, que isso não é tarefa só de mulher, mas de pessoas. Que menina pode brincar de bombeiro porque ela pode ser uma bombeira, engenheira, astronauta. Mas é preciso que se mostre isso para as meninas. Não apenas dizer que menina tem que vestir rosa e menino azul. Isso não contribui para uma educação igualitária. É preciso que as escolas deixem de reproduzir o padrão cultural machista que leva à misoginia, que é o ódio pela representação do feminino (...). As pessoas não nascem odiando, tudo isso é ensinado. As crianças são ensinadas e o que a sociedade padronizou? Que ser homem é ser ativo e ser feminino é ser passivo, emotivo. E quando eu falo na sociedade, os meios de comunicação também precisam compreender o que são esses papéis sociais de gênero para evitar os estereótipos também. Quando se dá uma notícia de uma violência sexual e desviam o foco do crime e vão para a vítima. Quando uma mulher pede um carro de aplicativo e é estuprada pelo motorista, não se pode dar uma notícia dizendo que uma mulher sozinha, ao sair de uma festa embriagada, foi estuprada. O estupro vem depois, primeiro se diz que ela era mulher, estava sozinha e tinha bebido. Como se isso justificasse ela ser violentada. Então, esses estereótipos são fatores que contribuem muito para que não se elimine a violência contra a mulher.

P - É um papel que cabe a todos os estratos da sociedade?

R - É um papel de todos. Dos pais dentro de casa educando os filhos, meninos e meninas, para uma convivência igualitária; dos adolescentes que precisam entender que o menino precisa respeitar a vontade da menina, da sua namorada, de não querer ter uma relação sexual; dos adolescentes e jovens saberem que ‘não é não’. Saber que qualquer relação sexual que não tenha sido consentida de forma plena, sem que aquela pessoa esteja realmente com capacidade para emitir a sua vontade, é uma violência; mesmo que seja uma namorada, esposa. Estamos próximos do Carnaval e é importante que as pessoas tenham essa consciência, que os homens aprendam a respeitar a vontade das mulheres; que o corpo da mulher não é um objeto que ele pode colocar a mão como se fosse uma coisa qualquer. Se ela não permite, ele não pode. Precisam entender que a mulher é um ser com vontades e que tem direito a sua intimidade, à sua liberdade, à sua sexualidade.

P - A discussão em questão passa pelo machismo?

R - O que mata é o machismo. O homem mata a mulher por ser machista. Ainda se usa no tribunal do Júri, em feminicídios, os termos ‘crime passional’ ou ‘violenta emoção’ para querer justificar a atitude do homem, como se aquilo tivesse sido uma coisa intempestiva e que a mulher deu causa para que ele sofresse aquele impacto e, com isso, ele a matasse. Pode haver casos de feminicídio em que realmente seja o primeiro ato de violência de um homem contra a mulher, mas geralmente já vem de algum tempo. Primeiro com violências mais sutis, agressões físicas e ameaças. E as ameaças nunca devem ser desconsideradas. A Lei Maria da Penha é muito importante porque ela traz justamente a questão de que é preciso toda uma rede de proteção à mulher. Ela prevê, inclusive, a inclusão dos homens em programas de educação de gênero. Se essa rede se fortalece é óbvio que vai se conseguir fazer o enfrentamento à violência de forma mais eficaz. Enquanto não tiver uma rede de proteção forte, nós iremos continuar a nos assustar com os índices, com as mortes violentas de mulheres e continuar andando com muito medo. As mulheres têm medo de sofrer violência em todos os lugares.

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