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“Dois Irmãos”: uma luta eterna

A adaptação do romance “Dois Irmãos” para a minissérie televisiva, no ar na Globo, levou uma boa parte dos brasileiros a tomar contato pela primeira vez com a beleza e genialidade de seu autor, o amazonense Milton Hatoum, vencedor do prêmio Jabuti com ess

A adaptação do romance “Dois Irmãos” para a minissérie televisiva, no ar na Globo, levou uma boa parte dos brasileiros a tomar contato pela primeira vez com a beleza e genialidade de seu autor, o amazonense Milton Hatoum, vencedor do prêmio Jabuti com esse livro.

O ódio e a rivalidade entre os irmãos gêmeos Omar e Yaqub (na minissérie interpretados na fase adulta pelo ator Cauã Reymond) tem precedentes em muitas outras relações problemáticas entre irmãos. Como as que o escritor e pesquisador Lucius de Mello analisa em “Dois Irmãos e seus Precursores: O Mito e a Bíblia na obra de Milton Hatoum”, livro publicado pela Humanitas a partir de sua dissertação de mestrado realizada no Departamento de Estudos Árabes e Judaicos da Universidade de São Paulo.

O ensaio volta no tempo e analisa como a narrativa de Milton Hatoum dialoga especialmente com os conflitos presentes no livro “Gênesis”, da Bíblia, permeado por brigas entre irmãos, como Caim e Abel, Esaú e Jacó, José e seus irmãos mais velhos. Também analisa como o mito dos gêmeos inimigos está presente na mitologia dos povos tupinambás.

Lucius de Mello conta que teve seu primeiro encontro com “Dois irmãos” em 2009, quando buscava estruturar seu projeto de mestrado. “Meu interesse na obra do Hatoum partiu primeiro porque estava interessado em estudar a narrativa bíblica como obra literária e não religiosa.

Já conhecia o romance ‘Esaú e Jacó’, do Machado (de Assis), e fiquei com receio de me debruçar sobre um autor do tamanho dele, com toda erudição e fortuna crítica que ele carrega, logo no mestrado. Aí fui ler ‘Dois Irmãos’ e me encantei pelo drama familiar bíblico de Zana, Halim, Omar e Yaqub”, conta o pesquisador.

Ele lembra ainda que Machado de Assis é um grande precursor de Milton Hatoum. “Ele foi o primeiro autor brasileiro a transformar em literatura o embate bíblico entre Esau e Jacó”, diz ele sobre o romance que é considerado a obra máxima da maturidade literária de Machado de Assis.

A escolha do amor

Segundo o pesquisador, “assim como Rebeca, mãe dos gêmeos bíblicos Esaú e Jacó, a personagem Zana, de Hatoum, também é mãe de gêmeos que vivem em conflito e as duas mães amam mais um filho do que o outro”, diz Lucius, que chama Zana de “Rebeca selvagem”, em seu amor por Omar.

Mas o que leva uma mãe a gostar mais de um filho do que do outro? Esse é apontado pelo pesquisador como um dos enigmas mais enriquecedores do romance. Aproximando Zana e Rebeca, encontramos respostas diferentes. “Segundo o narrador, Zana teria escolhido Omar como seu predileto porque o caçula nasceu por último e estava doente, precisava de mais cuidados que Yaqub”, aponta. Já na narrativa bíblica, Rebeca teria escolhido Jacó porque, segundo interpretações dos midrashistas, ela tinha sido avisada por Deus que Jacó seria o grande líder do povo judeu. Está escrito no Gênesis: ‘E Iahweh lhe disse: ‘Há duas nações em teu seio. Dois povos saídos de ti se separarão. Um povo dominará o outro, o mais velho servirá ao mais novo’”, cita.

A análise de Lucius de Mello constata ainda que tanto Omar como Yaqub se revezam nas semelhanças ora com Jacó ora com Esaú, em vários momentos da narrativa hatouniana. Nas primeiras páginas do romance, Yaqub logo é comparado a Esaú, visto que, assim como o personagem bíblico, também é o filho predileto do pai e o menos amado pela mãe.

“Só que, ao contrário de Esaú, Yaqub é mais estudioso e ligado aos livros do que Omar. Neste caso, Yaqub também pode ser comparado a Jacó”, completa. As aproximações com Caim e Abel também são enriquecedoras. “A cicatriz na face de Yaqub é a marca na fronte de Caim”, mostra o pesquisador.

Antagonismo entre irmãos também está na cultura indígena

A presença da cunhantã Domingas no casarão de Halim também deixa evidente a força que a mitologia ameríndia tem na história criada por Milton Hatoum.

Ela traz os mitos da floresta para a família de Omar e Yaqub. Numa das cenas entre ela e Zana, a índia diz: “Posso preparar um olho de boto? A senhora pendura o olho no pescoço e aí o caçula vem beijar a senhora...”. E foi Benedito Nunes quem levou Lucius de Mello até esta mitologia. Durante uma de suas últimas conferências na USP, o escritor paraense sugeriu a ele ler as pesquisas de Lévi-Strauss e Alfred Métraux para chegar à saga mítica dos Tupinambás.

Os gêmeos tupinambás Tamendonare e Aricoute eram rivais, divididos por seus diferentes temperamentos. Aricoute, intrépido, desprezava seu irmão Tamendonare, a quem considerava covarde. “Entretanto, filtrando-se as diferenças simbólicas, quando analisados, os gêmeos da Biblia, os da mitologia ameríndia e os do romance de Hatoum se entrelaçam. Um está dentro do outro e se revezam nos papéis descritos em cada narrativa”, reforça Lucius.

Esse foi apenas um dos exemplos que o autor analisou. Encontrando o trabalho da antropóloga Betty Midlin, chegou ao povo Aruá, e a outros irmãos em conflito, Andarob e Paricot. Andarob, o mais velho, é mais preguiçoso e menos inteligente que Paricot. Este, trabalhador, foi quem formou o mundo. “Outro encontro surpreendente na minha pesquisa foi com os gêmeos Macunaíma e Piá. Do imenso material poético que o folclore do povo indígena da Amazônia nos apresenta, Mário de Andrade retirou a figura mítica cujas aventuras serviram de base para o escritor criar seu personagem mais famoso: Macunaíma”, destaca.

Zana, a mãe que escolhe amar o caçula, o que nasceu por último e precisava de mais cuidados. (Foto: Divulgação)

Nael, o filho que corre por fora na disputa

O ponto em comum entre “Dois Irmãos” e as narrativas bíblica e ameríndia, sem dúvida, são os gêmeos e tudo o que eles trazem, especialmente a ambiguidade presente nos personagens. Mas essa imersão pela mitologia é fundamental também para o entendimento da complexidade do narrador, Nael, e do significado duplo dentro dele e da obra de Milton Hatoum. “Nael é um narrador intervalar, dividido entre dois mundos, duas identidades, centro para onde converge uma variedade de vozes que operam na narrativa hatouniana”, destaca Lucius de Mello.

Ao buscar relacionar Omar e Yaqub com Esaú e Jacó, o pesquisador descobriu que, ao contrário do que imaginava, Nael é quem mais se aproxima dos gêmeos bíblicos. Isso porque no final ele acaba sendo o herdeiro da primogenitura – bem em disputa entre Esaú e Jacó na saga bíblica.

O personagem termina conquistando mais o amor e atenção de Halim do que os próprios gêmeos. A busca de Nael pelo nome do pai – já que ele é filho da cunhantã Domingas com um dos gêmeos ou quem sabe até com Halim – “esse é um dos enigmas do romance”, lembra o pesquisador –, também não deixa de ser um apego que aproxima Nael da obsessão de Jacó pela herança do poder político do patriarca bíblico Isaac.

Mas, enquanto Jacó deseja e trapaceia para conquistar a força política, o personagem de Hatoum, ao mesmo tempo em que procura saber o nome do pai, também manifesta repúdio aos possíveis candidatos. “Sem dúvida, Nael é a alma do romance e uma prova de que Hatoum segue à risca o que aprendeu com seus precursores, especialmente, com Machado de Assis e Gustave Flaubert no que se refere ao controle preciso do narrador”, elogia o autor da pesquisa.

(Laís Azevedo/Diário do Pará)

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